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quinta-feira, outubro 16, 2014

"O GALO"

Já fazia cinco anos que eu tinha um emprego de merda e levava uma vida de merda. Tudo era uma merda. Trabalhava seis dias da semana em um supermercado onde tocavam músicas que enlouqueciam qualquer um que as escutasse por mais de uma hora, e eu as ouvia oito horas por dia seis vezes por semana, às vezes sete, dependia da necessidade ou não da empresa de contar com a minha inutilidade no dia da minha folga, o que era raro, mas acontecia. Eu odiava aquilo. Odiava o meu emprego. Odiava a minha vida, ou aquilo que eu deixei que ela se tornasse, mesmo assim eu andava por aí sorrindo como se fosse legal, e gastava meu tempo vago assistindo a seriados ou qualquer coisa que levasse minha mente pra longe dali.
Há nove anos, eu comecei a ter transtornos do sono e acordava de madrugada e não voltava a dormir. Aquilo não me parecia normal, mas eu não ligava, pois na época não tinha um emprego e poderia ter um nap time a qualquer hora do dia, mas logo após entrar para a vida corporativa, aquilo começou a me incomodar, pois eu deveria estar disposto para o trabalho, coisa que nunca acontecia. Eu estava sempre com sono durante o dia e já deitava preocupado com o horário que eu teria que levantar da cama. Eu sempre deitava às 23 h e pensava, “porra, tenho que dormir logo ou não conseguirei levantar às 5 h”.
O mundo estava mudando muito rápido e a tecnologia que deveria ter vindo para facilitar as coisas, estava complicando tudo. As pessoas já não se socializavam mais, cada uma ficava no seu mundinho com seus celulares que foram diminuindo de tamanho, depois aumentando, ficando fino e começando a assoviar. Para todo lado que você fosse tinha um filho da puta com um celular assoviando. As pessoas haviam desistido de usar os fones de ouvido e deixaram de pensar nos direitos das outras. Era tudo muito triste.
Eu era um músico fracassado, mas tinha uma audição que poderia ouvir alguém peidar a várias quadras de distância, o que só tornava o ato de dormir mais complicado, pois eu ouvia tudo o que se passava lá fora e para ser honesto, nunca tive uma casa decente em algum lugar onde houvesse sossego ou pessoas que respeitassem o sono das outras. Eu morava em Mauá, se não era uma grande capital, estava longe de ser uma cidade interiorana. A Cidade era dividida por pequenas e grandes periferias e eu já havia passado por muitas delas, pois sempre que acabava o contrato do aluguel, logo eu estava em um lugar diferente, mas o problema era sempre o mesmo, eu não conseguia dormir.
Se antes de empregos e casamento, eu era acordado pelos caras que vendiam drogas em frente à casa onde eu morava, depois de casamento e empregos, eu era acordado pelos animais que estavam do lado de dentro da minha casa ou do lado de fora. Parece besteira, mas eu não era acostumado com animais.
Na minha casa havia vários gatos. Nenhum deles era meu, mas ao mesmo tempo era, sei lá. Tinha gato branco, gato preto, gato malhado, em meio a esse monte de gatos tinha uma gata. Ela era a única que fazia xixi na porra da caixinha de areia e acabava dando menos trabalho que todos os outros. O sofá cheirava a caixinha de areia. A miação e a fodeção deles pela madrugada adentro me irritava, acabava com o meu sono. Com o tempo eu comecei a tomar remédios para facilitar o sono, mas era pior, pois eu acordava ainda com mais sono e produzia cada vez menos no trabalho, apesar de não necessitar de cérebro para realizá-lo, era necessária disposição física, e isso, era tudo o que eu não tinha.
Quando eu imaginava que as coisas não poderiam ficar piores, um dos moradores da rua onde eu morava começou a criar animais diferentes do que estávamos acostumados a ter por ali. De frente para a casa onde eu morava, havia uma área verde, era bonita. Esse senhor resolveu cercar boa parte da área verde pertencente à prefeitura da Cidade e dentro desse cercado ele plantava milho e outras coisas e tinha quatro ou cinco cães que viviam amarrados junto às árvores e um deles uivava à noite, pois discordava de estar ali amarrado. Acho que ele era o mais esperto. Eu gostava dele. Do lado de fora do cercado tinha cavalos, e isso era incomum, ter cavalos soltos, passeando e cagando por toda a rua. Junto com os cães havia muitas galinhas, cerca de vinte. Se for juntar com os filhotes, tinha mais de trinta galináceos, mas o que realmente incomodava e me tirava completamente o sono era o galo. O filho de uma galinha era grande e um desafinado cantor que cantava a madrugada toda e aquilo parecia incomodar apenas a mim. Ele começava a cacarejar as duas e meia da manhã, em intervalos de 40 a 40 minutos. Ele cantava alto debaixo da janela do meu quarto durante dez minutos e aí parava por trinta ou quarenta minutos, logo depois tornava a cantar por mais dez ou quinze e parava por vinte ou trinta e voltava a cantar e ia repetindo esse ciclo infernal por toda a madrugada. Eu já nem sabia mais qual tinha sido a última noite de sono em que dormi a noite toda sem ser acordado por aquele galo dos infernos. Eu começara a chegar com olheiras consideráveis e a cada dia mais lento ao trabalho.
— Cara, você está péssimo! — disse Rodrigo.
Rodrigo era meu único amigo naquele emprego chato.
— Eu sei cara. — respondi — Não estou conseguindo dormir com aquele galo cantando à noite toda.
— Se fosse eu, já o teria matado. Você sabe, eu não aguento. Eu estouro fácil. Você aguenta as coisas demais Carlos.
— O que você quer que eu faça, quer que eu mate o galo?
— Sim. Por que não? Eu já teria feito isso e ainda jantaria ele com prazer — disse com um sorrisinho sarcástico e maléfico ao canto da boca.
Eu já estava realmente considerando matar o galo, mas eu era muito frouxo para fazer qualquer coisa que fosse contra a lei, se é que existia alguma pra isso.
As noites continuavam iguais. Eu ia para a cama com alguma música daquele mercado gravada na minha cabeça. Chegava tarde da faculdade. Tomava banho, comia algo e ia deitar por volta das 23 horas, às 2h40m, acordava com o galo cantando. Essa situação se arrastou por duas semanas. Até que decidi denunciar o senhor que criava aqueles galináceos. Fui à prefeitura e à vigilância sanitária. Nesses lugares descobri que aquilo infringia três leis diferentes e cinco artigos no mínimo. Aquilo me deixou com uma ponta de esperança de que fariam algo, afinal de contas eu era um contribuinte com todas as minhas contas pagas. Eu não tinha dinheiro para comprar um par de chinelos, mas as contas estavam sempre pagas. Os dias foram passando e nada de aparecer um fiscal da prefeitura ou da vigilância.
— Já falei pra você, Carlos. Mata esse galo. Eu já tinha matado essa porra — disse Rodrigo.
— Não cara, não vou matar ninguém. O galo deve ser australiano e está fora do fuso e a culpa não é do galo e sim do cara que está criando esse monte de coisa em uma zona urbana — eu disse. Mas aquilo ficava na minha cabeça, e zunia, “mata o galo, mata o galo”.
Como nenhum fiscal apareceu em duas semanas, resolvi dar um fim àquilo. Fui até o açougue em um domingo em que eu estava de folga e comprei um frango assado. Voltei para casa e caminhei em direção ao viveiro, galinheiro, colheita maldita, seja lá como for que queira chamar aquilo. Abri o embrulho e logo as galinhas vieram até mim. O galo me olhava de longe, parecia não gostar daquilo, como se eu tivesse tomando o espaço dele. Os cães começaram a latir com a minha presença, não me importei. Não havia ninguém na rua, de domingo era sempre assim. Desembrulhei o meu frango assado e olhando para o galo, arranquei uma coxa lentamente, sem tirar os olhos dele. Eu o estava ofendendo, era uma pressão psicológica, eu queria amedrontá-lo. As galinhas iam bicando as migalhas que caíam no chão. Assim que eu terminei de comer a coxa, joguei o osso ao lado dele. Ele deu um pequeno salto para trás e ficou de lado para mim, me olhando com aquele olhinho maldito. O olho dele parecia girar. Aquilo era um ultimato, uma afronta. Queria deixar claro que ele seria o próximo.
A cada pedaço de osso que eu jogava próximo a ele, este dava um pulinho para trás e fazia um ruído era tipo, “pó”, “cocó”, “có”, ou sei lá que porra. Ele me fitava e eu mastigava seu semelhante lentamente sem tirar os olhos dele. Ao final toda a carcaça do frango estava ali, rodeando aquele galo cantor, o desgraçado que tirava as minhas noites de sono. Eu conseguia sentir o medo dele. Voltei para casa satisfeito. Nunca havia ameaçado alguém com tanta destreza. Senti-me um mafioso italiano da periferia de Mauá. Eu era o Don.
Anoiteceu e eu não fui acordado às 2 h. Quatro e quarenta da manhã, ele começou a cantar. O cacarejar parecia mais alto do que nunca. Ele estava retrucando. Era um sabidão. Você sabe como os sabidões terminam.
Levantei rápido da cama. Desci as escadas e alcancei a sala. Peguei as chaves corri até à cozinha, abri a porta e desci as escadas que davam acesso à garagem. Lá havia de tudo, menos um carro. Tinha madeiras podres, mesas velhas, ferro velho, tijolos... Peguei quatro tijolos e atravessei a rua. Ele estava em cima de uma árvore. Taquei a primeira pedra. “Pôpó”, ele voou da árvore e aterrizou na grama. “Popô”... cacarejava baixinho, me fitando com olhos demoníacos. Taquei a segunda pedra. Errei de novo. Caralho! Eu era ruim de mira. Taquei a terceira pedra com tanta força que senti meu ombro dar uma fisgada. Ser velho é uma merda, pensei. Por fim, joguei-lhe a quarta e última pedra, e em um movimento Matrix ele desviou. Ele era bom. E eu estava puto com a minha péssima mira.

O galo correu até o cercado e se misturou aos outros galináceos. Os cães começaram a latir alto. Com medo que alguém me visse ali, corri para casa. Subi as escadas. Entrei, fechei a porta. Lavei as minhas mãos e fui deitar. Os cães haviam parado de latir. Já passava das 5 h e tudo estava silencioso, poderia enfim dormir em paz. Deitei, me cobri, fechei os olhos e ouvi alto, “cocóricó”!!!!



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#RickSemog

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